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Hipóteses legais aplicáveis ao tratamento de dados pessoais de crianças e adolescentes

A Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD, Lei nº 13.709/2018) previu seção específica para o tratamento de dados pessoais de crianças e de adolescentes. Em sintonia com o arcabouço jurídico-normativo nacional e internacional, o art. 14, caput da Lei, explicita que o tratamento dos dados desses titulares deverá ser realizado em seu melhor interesse, nos termos da legislação pertinente.


Por sua vez, o § 1º do art. 14 estabelece que “o tratamento de dados pessoais de crianças deverá ser realizado com o consentimento específico e em destaque dado por pelo menos um dos pais ou pelo responsável legal.” Já o § 3º do mesmo artigo prevê que a coleta de dados de crianças poderá ser realizada sem o consentimento referido no § 1º quando for necessário para contatar os pais ou responsável legal ou para a proteção da criança.


A interpretação desses dispositivos é objeto de acentuada controvérsia entre acadêmicos, profissionais da área e representantes da sociedade civil, o que, na prática, se configura como uma situação de incerteza jurídica para os agentes de tratamento, nomeadamente em razão da indefinição sobre quais hipóteses legais autorizam o tratamento de dados pessoais de crianças e adolescentes.


Por exemplo, entre as dúvidas endereçadas à ANPD nos últimos meses, podem ser mencionados casos de órgãos públicos que manifestaram posições divergentes sobre o tema. De um lado, aqueles que entendem que o consentimento seria a única hipótese legal apropriada para o tratamento de dados pessoais de crianças. De outro lado, aqueles que sustentam que outras hipóteses legais previstas nos arts. 7º e 11 da LGPD, tais como execução de políticas públicas e realização de estudos por órgãos de pesquisa, poderiam legitimamente amparar, entre outras operações de tratamento, o compartilhamento de dados pessoais entre órgãos públicos ou entre estes e uma universidade pública.


É possível identificar, ainda, uma terceira interpretação relevante sobre o tema. Segundo essa interpretação, defendida por alguns atores sociais, os dados de crianças e adolescentes seriam equiparados a dados sensíveis. Como consequência, nesses casos, o tratamento somente poderia ocorrer com base nas hipóteses legais previstas no art. 11 da LGPD.


Considerando essas divergências de interpretação, e as suas relevantes implicações práticas, o presente estudo tem por objetivo analisar as possíveis hipóteses legais aplicáveis ao tratamento de dados pessoais de crianças e adolescentes. Com isso, pretende-se fornecer insumos para subsidiar a atuação da ANPD em torno do tema, em particular no que tange à expedição de orientações que possam conferir segurança jurídica aos agentes de tratamento ao realizar o tratamento de dados pessoais dos referidos titulares, considerando a previsão constante no art. 55-J, inciso XX da LGPD.


O estudo está dividido em quatro partes. Na primeira, será analisada a aplicação do consentimento dos pais ou responsável legal, conforme art. 14, §1º da LGPD, como única hipótese legal para o tratamento de dados pessoais de crianças. Na segunda parte, analisa-se a aplicação exclusiva das hipóteses legais previstas no art. 11 ao tratamento de dados pessoais de crianças e adolescentes, haja vista a sua possível equiparação a dados sensíveis. Na terceira parte, discute-se a aplicação das hipóteses legais previstas nos arts. 7º e 11 da LGPD ao tratamento de dados de crianças e adolescentes, desde que observado o princípio do melhor interesse. Por fim, na conclusão do presente estudo, sugere-se proposta de enunciado, para fins de fixação de interpretação sobre o tema em questão.


Cumpre enfatizar que não constitui objeto do presente estudo a análise sobre as relações entre a LGPD e o regime de capacidade civil previsto no Código Civil. Da mesma forma, não se pretende abordar as possíveis técnicas para aferição do consentimento ou para a aferição de idade de usuários de aplicações de internet. Embora relevantes para o tratamento de dados pessoais de crianças e adolescentes, a discussão sobre esses temas correlatos demanda uma abordagem mais ampla, levando em consideração outros contextos e aspectos técnicos e jurídicos, que vão além dos propósitos deste estudo.


Em suma, o estudo não pretende ser exaustivo, seja em razão de limitações de escopo e de tempo, seja por se tratar de uma versão preliminar, que busca promover a discussão pública e coletar contribuições da sociedade, a fim de, em um momento posterior, estabelecer interpretações e orientações mais conclusivas.


A disponibilização pública da versão preliminar deste estudo, no formato de texto para discussão, atende às competências legais da ANPD para “promover e elaborar estudos sobre as práticas nacionais e internacionais de proteção de dados pessoais e privacidade” e para “ouvir os agentes de tratamento e a sociedade em matérias de interesse relevante” (art. 55-J, VII e XIV, LGPD).